sábado, 16 de fevereiro de 2008

Fele a respeito de Almodóvar

A entrevista foi originalmente publicada no site Cineweb e transcrita integralmente para este blog. Foi elaborada por Neusa Barbosa, autora de biografias como de Woody Allen.

Féle Martinez, um ator na pulsação da Espanha
11/11/2004
Neusa Barbosa
Um dos mais importantes jovens atores do cinema espanhol, Féle Martinez corre o risco de ser obscurecido pela fama atual de seu colega em cena em Má Educação, o mexicano Gael García Bernal. O que não seria nem um pouco justo. Afinal, este valenciano nascido em Alicante, em 1975, tem talento de sobra para ser conferido desde seu filme de estréia, Morte ao Vivo, do também estreante Alejandro Amenábar - uma atuação que valeu a Martinez o prêmio Goya de revelação em 1996. De lá para cá, o ator tem freqüentado algumas das melhores telas hispânicas, dirigido por nomes como Julio Medem (Os Amantes do Círculo Polar), e também co-produções internacionais, caso de Capitães de Abril, da portuguesa Maria de Medeiros. Nesta entrevista, concedida durante o Festival de Cannes de 2004 - em que Má Educação foi o filme de abertura -, Martinez comentou seu trabalho sob a batuta de Pedro Almodóvar, a educação católica na Espanha e sua por enquanto solitária incursão como diretor, do curta-metragem El Castigo del Ángel.

Cineweb - Como é Almodóvar como diretor?

Féle - Pedro é muito exigente, mas creio que isto é necessário. O contato com ele permite entender porque seus filmes têm a qualidade que têm. Porque ele está absolutamente envolvido em tudo e isso faz a diferença. Tomara que os diretores com quem eu venha a trabalhar tenham a metade de exigência que ele tem. Porque ele não é exigente apenas com quem está na sua equipe, é incrivelmente exigente consigo mesmo. Vive por e para o cinema. Isso é impressionante. Trabalhar com ele e poder vislumbrar a paixão que sente pelo que faz te motiva muitíssimo e fez com que se trabalhe muito mais duro para estar à sua altura. O resultado é que seu trabalho sai muito mais perfeito do que se fosse com um diretor que te deixasse levar.

Cineweb - Ele é um diretor impositivo ou negocia com os atores?

Féle - Havia uma comunicação intensa entre nós e isso foi muito mais importante. Eu trabalho com um diretor e para um diretor, não trabalho sozinho para o filme. Nem o filme nem o roteiro são meus. O personagem e o roteiro foram criados por Pedro, Pedro tem o filme montado na cabeça e é seu primeiro espectador. Por tudo isto, creio que há um erro na atitude dos atores que trabalham sozinhos, sem levar em conta o diretor, porque você depende dele. Ele é como o marionetista. Evidentemente, há coisas com as quais não se concorda, sempre ocorre algo assim. Aí entra a comunicação, porque você pode discutir esses pontos.

Cineweb - Alguma vez ele lhe pediu que fizesse algo que não queria fazer?

Féle - Havia muita comunicação, o que é absolutamente necessário. Realmente havia coisas que eu estava mais ou menos de acordo na interpretação. Mas aí entra a confiança que se tem no diretor. Havia coisas sobre as quais eu tinha dúvidas mas ele sempre me explicava tudo, bem mais do que eu havia perguntado, até. Eu recolhia tudo o que ele dizia como lingotes de ouro, cada informação. Cada vez que ele falava, abria bem os ouvidos e preparar o "disco rígido" para processar tudo que pudesse.

Cineweb - Você chegou a perguntar a Pedro se o seu personagem, Enrique, era baseado nele mesmo, se era autobiográfico?

Féle - Sim, desde que li o roteiro conversamos sobre isso. Perguntei diretamente a ele: "Isto é autobiográfico, Pedro? O quanto isto tem a ver contigo?". Ele me respondeu que evidentemente haviam no personagem diversas coisas que eram suas, mas não se tratava de um filme autobiográfico em absoluto. Ele dizia: "É uma história de 30 anos atrás e eu não sou a mesma pessoa de 30 anos atrás". Evidentemente, ele é um artista e utiliza coisas de si mesmo para criar histórias. Falamos disto desde o primeiro momento porque eu não queria imitar Pedro, queria que Enrique fosse um personagem original, ainda que haja muitas pistas que levem a Pedro.



Cineweb - Você trabalhou duas vezes com Almodóvar, em Fale com Ela e em Má Educação. Qual foi a diferença?

Féle - Neste filme, eu estava bem mais relaxado. Porque, em Fale com Ela, estava absolutamente aterrorizado, porque era a primeira vez que trabalhava com Pedro Almodóvar. Então foi algo que me pareceu maravilhoso porque me preparei vendo filmes de Buster Keaton - eu adoro Buster Keaton! -, Harold Lloyd, Charles Chaplin, Douglas Fairbanks, ou seja, assistindo cinema mudo em quantidades industriais. Pareceu-me maravilhoso trabalhar numa chave em que já não se trabalha. No cinema mudo, trabalha-se muito com o corpo, já que não existe a palavra. Foi maravilhoso, especialmente naquele cenário que era uma cadeira gigantesca. Poder andar sobre Paz Vega e dentro de Paz Vega foi toda uma experiência!

Cineweb - Até por já ter atuado com Almodóvar, sua preparação neste segundo filme foi muito diferente?

Féle - A diferença foi abismal. Não tive que passar por nenhum tipo de casting. Pedro queria que eu fizesse meu personagem, o que é uma responsabilidade tremenda. Fiz meu teste no papel esperando não trair sua expectativa, não decepcioná-lo. Aí entrou minha segunda fase de neurose. E a verdade é que o pânico era uma força motora para preparar-me melhor, pesquisar mais. Mergulhei de cabeça nos anos 80, lia roteiros, escutava música espanhola dos anos 80, filmes da época, os de Pedro, também os de Ivan Zulueta, e Minha Adorável Lavanderia, de Stephen Frears, lendo livros, entrevistas, olhando livros de arte, de tudo. Tentei empapar-me de tudo que pude. Foi precioso, porque essa foi uma época que me alcançou tarde. Era muito jovem quando terminou a década de 80. De maneira que foi como entrar numa máquina de tempo.



Cineweb - Qual é a sua experiência com a educação católica?

Féle - Estudei num colégio católico e sofríamos castigos ali. A Igreja naquela época já deixava de ameaçar-te com o medo, o medo ao pecado. Evidentemente, éramos obrigados à confissão e íamos todos confessar-nos, o que era um saco! Lembro-me de uma vez em que um dos padres interrompeu o que eu estava contando e perguntou: "Você se masturba?". Fiquei espantadíssimo.

Cineweb - Quantos anos você tinha?

Féle - Uns 11 anos, não mais do que isso. Ouvir aquela palavra foi um choque. Todos já tínhamos ouvido falar disso, claro. Mas que um padre te diga isso no confessionário, assim de repente, muito técnico e detalhando tudo, não se espera. Desse mesmo padre, se falava no colégio que havia dois meninos a quem ele dava presentes. Era uma coisa que sabíamos, mas não se falava disto. Nem com os teus pais. Só falei disto com meu pai justamente quando começamos toda a preparação para o filme.

Cineweb - A idéia de compor o personagem do diretor que você interpreta como exigente e controlador foi sua ou foi de Pedro, de alguma maneira fazendo uma autoparódia?

Féle - Não me lembro. Creio que disso não falei com Pedro nunca, foi algo que surgiu espontaneamente. Você tem o personagem dentro de si e de vez em quando ele faz o que quer. Creio que é precioso que aconteçam essas coisas. Eu nem sequer me havia dado conta disso.



Cineweb - Você dirigiu um curta-metragem, El Castigo del Ángel. Conte como foi essa experiência atrás das câmeras.

Féle - Na verdade, é um curta bastante peculiar. Porque tudo começou como um exercício para criar atmosferas com dois personagens. Seria algo que faríamos pela primeira vez, eu e o diretor de fotografia - que é fotógrafo, não fotógrafo de cinema. A verdade é que esse filme me escapou das mãos.

Cineweb - Em que sentido?

Féle - Um diálogo que íamos fazer entre quatro pessoas, de uma forma muito íntima, na casa de qualquer um dos quatro, tentando criar alguns movimentos com a luz, com os movimentos de câmera, mais como um exercício, de repente se transformou numa equipe de 30 pessoas. Mas foi maravilhoso, porque descobri um aspecto do meu trabalho que não conhecia, que é como se prepara um curta. Foi muito bonito, encaro este trabalho com muito respeito.

Cineweb 9-11-2004

Nenhum comentário: